Crônicas Marsicanas

By Alberto Marsicano

Animal, June 1991


Sento-me num banco em Trafalgar Square: milhares de pombos revoam entre o céu cinzento dilacerado por clarões azul-dourado. Como alguma coisa e caminho lentamente até Picadilly Circus onde encontro Emily, uma amiga que escreve sobre programação experimental na revista Time Out. Ontem, num pub, havíamos combinado de viajar até a cidade de Leeds para assistir a um recital de Frank Zappa.

Após tomarmos a Northern Line em Leicester Square, desembarcamos na estação Charing Cross onde compramos duas passagens para Leeds. O estádio estátotalmente lotado. Uma multidão comprime-se esperando ansiosamente a entrada de Zappa. Jamais me esquecerei da visão insólita dos planos cubistas da cinzenta cidade industrial de Leeds, contemplados da janela do trem em alta velocidade sob a trilha sonora (ouvida num walkman): Uncle Meat dos Mothers of Invention. Tudo estremece quando Zappa surge iluminado no palco empunhando uma guitarra semi-queimada (que pertencera a Hendrix) e ecoa o primeiro acorde.

Emily me diz que certa vez, ao entrevistar Zappa, ele lhe segredara que pluga sua guitarra num pequeno Pig Nose (aparelho a pilha) e coloca na frente deste um microfone de voz que é amplificado para grandes estádios. Outra invenção de Zappa é a adaptação de um microfone de contato na extremidade do braço do instrumento (perto das tarrachas). Este microfone registra o som acústico das cordas, com uma pequena defasagem em relação ao som dos captadores.

Turbilhões ogivas de fluxos estridentes sob a luz policromática dos refletores. Cápsulas cristalinas de som arrojadas-velozmente em amplos feixes vibráteis: diapasões de cor. Zappa, o grande maestro das purpúreas refrações do abismo, conduz a fluetivaga correnteza elétrica que dionisíaca e magicamente se irradia, espargindo-se por todo o grande estádio.

Ao fim do bizarro ritual, Emily tem a brilhante idéia de tentar entrar no camarim. Com o salvo-conduto de sua carteirinha da Time Out (e da minha da Animal) percorremos as labirínticas catacumbas subterrâneas daquele Coliseu e por sorte na porta do camarim estava o empresário do guitarrista, conhecido de minha amiga.

Entramos. Os músicos conversavam com um grupo de franceses e num relance observei Zappa sozinho no fundo da sala, tomando fartos goles de vinho Chianti no gargalo. Hesitantes, nos aproximamos e fui apresentado por Emily como citarista brasileiro. Zappa sorriu e ela lhe perguntou se aquela guitarra queimada era realmente de Jimi Hendrix.

Zappa, com uma expressão vacilante, respondeu que não tinha muita certeza e que pagara por ela cinco mil dólares a um negão do Harlem. Neste momento um dos franceses chega até nós e exelama entusiástico:

Frank, voce é o maior guitarrista vivo !

Zappa o interrompe bruscamente:

– Não sou guitarrista: sou escultor !!

Os franceses começam a rir, tomando como non sense a insólita resposta. Mas notei um preciso rigor científico naquelas palavras e senti por um momento que Zappa não estava rindo, mas encarando-me argutamente.

– Não sou guitarrista: proclamou o grande mestre: sou um escultor que esculpe grandes massas de ar que saem dos altofalantes !


Another edit of this article was included in the book Zappa - Detritos Cósmicos, pp 133-134.

"Não sou guitarrista, mas escultor!"

LEEDS (Inglaterra)

Trafalgar Square, centro de Londres. A estátua do Almirante Nelson contracena impávida com a volátil revoada de pombos na fria tarde de outono. Caminho até Picadilly Circus, onde encontro Peggy, uma amiga que escreve na revista Time Out. Ontem, num pub, havíamos combinado de viajar até Leeds para o show de Frank Zappa.

Pegamos a Northern Line em Leicester Square e, na Kings Cross, compramos as passagens. Jamais esquecerei a visão da cidade industrial de Leeds rabiscada na velocidade bala do trem, ouvindo "Uncle Meat", dos Mothers of Invention.

O estádio do Leeds United estremece quando Zappa surge iluminado, empunhando uma guitarra semiqueimada (que pertencera aJimi Hendrix), e vocifera o primeiro acorde. Peggy comenta que, quando ela lhe perguntou qual amplificador mais gostava de usar nos shows, ele lhe respondera que era o Pig Nose (minúsculo amplificador a pilha), em cuja frente colocava um microfone de voz. Outra invenção de Zappa é adaptar um captador na extremidade do braço da guitarra (perto das tarraxas), que registra o som acústico das cordas com uma pequena defasagem ( delay) em relação ao elétrico.

Turbilhões-ogivas de fluxos estridentes sob a luz policrômica dos refletores. Cápsulas cristalinas de som arrojadas velozmente em amplos feixes vibráteis.

Alberto Marsicano, graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo, introdutor da cítara clássica indiana no Brasil e discípulo de Ravi Shankar, editou diversos livros, como Jim Morrison Por Ele Mesmo, Rimbaud por Ele Mesmo e A Música Clássica da India. Como tradutor, publicou Escritos de William Blake, Haikai e Antologia da Poesia Clássica Japonesa.
Gravou os CDs Benares, Impressionismos, Raga do Cerrado, Ouintessência, Electric Sitar(produzido na Rússia e na China) e Sitar Hendrix (produzido nos Estados Unidos).

Zappa, o grande maestro das refrações do abismo, conduz a fluctívaga corrente elétrica, que, dionisíaca, irradia-se pelo estádio. Ao fim do bizarro ritual, Peggy sugere trocarmos uma idéia com ele no camarim. Com o salvo-conduto de sua carteira do Time Out, penetramos as catacumbas daquele Coliseu.

No camarim, enquanto os músicos batem papo com um grupo de yuppies franceses, Zappa, ao fundo, bebe no gargalo fartos goles de Chianti. Hesitantes, nos aproximamos e sou apresentado por Peggy como citarista brasileiro. Zappa, sorrindo, aperta-me firme a mão, e ela pergunta a ele se a guitarra queimada era realmente de Hendrix. Hesitante, Zappa responde que não tinha muita certeza e que pagara por ela cerca de cinco mil dólares a um negão do Harlem. Um dos yuppies franceses chega até nós e exclama:

Frank, você é o maior guitarrista do mundo!

Zappa, com cara de bode, o interrompe:

Não sou guitarrista, mas escultor!

Todos começam a rir, tomando como nonsense a resposta. Notei um preciso rigor em suas palavras, e ele, então, mirando-me, proclama:

Esculpo massas de ar que saem das grandes colunas de alto-falantes!*

* Frank Zappa candidatou-se na década de 80 à presidência dos Estados Unidos. Num debate em rede nacional com os candidatos, Ronald Reagan (candidato à reeleição) perguntou-lhe se achava que seria um bom presidente para os Estados Unidos. Zappa respondeu-lhe: "Será difícil ser pior que meus antecessores". [3]


Notes. Alberto Marsicano (1952-2013) lived in "Swinging London" in the late 60s. Met Ravi Shankar and studied sitar there. In the 80s he started to write down his incredible and untold stories as "Crônicas Marsicanas" (Marsican Chronicles), which first texts came out in the comic magazine Animal. (Trip, February 2008). They were published as a separate book in 2007.

There are several questions in this article.

Charles Ulrich:
1. FZ is not known ever to have played at Leeds United stadium Elland Road (or anywhere else in Leeds). It's true that I can't be certain that the giglist is complete. However, the concert described in the article would probably have occurred after FZ had the Hendrix Strat refurbished (circa 1976) and after the Walkman was invented (1979). A concert that late and that large (the capacity of Elland Road is 37,792) would probably have been brought to my attention by now.

2. According to Marsicano, FZ said he bought the Hendrix Strat from "um negão do Harlem". Google Translate renders "negão" as "nigga", which is a problematic term in English. I'm told that it's not a derogatory term in Portuguese. But FZ still wouldn't have said that. He told David Mead : "Well, there was this guy named Howard Parker - they called him 'H' - who was Hendrix's roadie, gofer and general assistant. He stayed at our house for a couple of months in the late '60s, and he had this guitar which Hendrix had given to him - I thought it was from the Miami concert. He gave it to me and we had it hanging on the wall as a decoration for years and years, and then I met some guys who were capable of putting guitars back together, so I had it done." According to that interview, it was a gift, not a $5000 purchase. You can see H in this video. He appears to be white, and he sounds like he's from England, not Harlem.

3. This is not true. FZ didn't run for president in 1984. And he certainly didn't debate Reagan on television.

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